segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Interpretando o Brasil (parte 1): von Martius

O primeiro trabalho científico (com metodologia e objetos bem definidos) sobre o Brasil como nação coube a um estrangeiro, o alemão (então bávaro) Karl Friedrich von Martius (1794-1868), que visitou o país entre 1817 e 1820, visitando numa longa expedição de sul a norte, saindo do Rio e indo até mesmo ao Amazonas.
A obra que escreveu, Como se deve escrever a história do Brasil, foi motivada por um concurso para escolher o melhor projeto para elaborar uma história do Brasil, promovido em 1840 pelo recém-fundado IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), órgão criado elo imperador D. Pedro II como parte dos esforços de fomentar uma "nacionalidade" brasileira em contraponto ao ex-colonizador. von Martius escreveu seu trabalho em 1843, publicou-a em 1845 e a teve premiada como vencedora do concurso em 1847.
Entre as principais ideias ali expressadas estavam a de que o país teria que se fortalecer difundindo entre os brasileiros sentimentos de patriotismo e irmandade, atentando para a "peculiar" formação de nosso país, formado pela convergência de três "raças" (o índio, o branco e o negro) e de que a relação entre essas raças deveria ser levado em conta nesse projeto, propondo (ainda que não claramente) a imagem de um país mestiço que seria o grande tema de debates de nossos intérpretes posteriores no século XX.
Essa proposta de von Martius, que foi seguida quase à risca, adequa-se à teoria da construção artificial das nacionalidades, de Benedict Anderson, para quem a nação é "como uma comunidade política imaginada", sendo limitada simultaneamente pela geografia e pela própria mentalidade de seu povo.


domingo, 6 de janeiro de 2013

Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 7)

O direito penal como direito público

Normalmente o direito penal objetivo é posicionado na esfera do direito público interno por conta dos supostos objetivos sociais gerais de suas normas (por seu conteúdo) ou então da exclusividade e imperatividade com as quais o Estado as impõe (aspecto formal).
É nisso que se baseiam os clássicos penalistas quando lembram que o direito penal objetivo só pode ser exercido pelo estado (Magalhães Noronha e Basileu Garcia) e ainda que o direito penal está relacionado ao direito público pelo "fato de atender, de maneira imediata e prevalecente, a um interesse de caráter geral" (Miguel Reale). Heleno Fragoso fundamenta essa inclusão "não só proque sua proteção refere-se sempre a interesses da coletividade, como também o Estado detém o monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido".
Uma revisão dessas perspectivas supõe três linhas críticas: 1) a crítica da distinção a-histórica entre direito público e direito privado; 2) crítica do Estado como abstração a-histórica; e 3) a crítica do positivismo jurídico penal.
1) A distinção entre direito privado-direito público era completamente desconhecida das práticas penais primitivas, aparecendo pela primeira vez no direito romano (em Ulpiano), quando surgiu dos interesses privados do patriciado em tornar seus interesses "públicos", intermediados pelo governante. Depois da superposição desses dois eixos durante a Idade Média até o final do Absolutismo (senhor feudal era dono do imperium=direito público e do dominium=direito privado), essa distinção ressurgiu com toda força por conta dos interesses dos revolucionários burgueses, novamente mostrando a origem classicista dessa dicotomia.
2) Importante também questionar o Estado como promotor da "harmonia e da estabilidade sociais, visando o bem de toda a coletividade", cabendo desmistificar esse papel por conta que o Estado foi um produto de sociedades que, para resolver seus antagonismos inconciliáveis, estabeleceram um poder aparentemente acima da sociedade, mas dela originado e que na sociedade de classes tem apenas papel de manter uma ilusória comunidade de interesses, visto que protege primordialmente os interesses da classe dominante.
3) Cabe, finalmente, a crítica do positivismo jurídico-penal, que entende que o objeto de estudo do penalista deve ser exclusivamente o direito estatal, reducionismo vinculado a uma tradição ideológica do estado liberal. Sem dúvida alguma o objeto privilegiado do direito penal são as normas jurídicas estatais, mas não se pode olvidar a face ilegal do sistema penal (ditadura militar, violência policial, "lei dos criminosos"). O estudo do direito penal não pode, assim, circusncrever-se ao discurso legal do estado,  perdendo-se na ilusória polaridade jusnaturalismo-positivismo, lembrando as palavras de Marilena Chauí: "Abstrações gêmeas, o positivismo jurídico toma o direito como fato, enquanto o jusnaturalismo o apreende como idéia", dissimulando o positivista a significação social em uma "ordem" posta a todos pela classe dominante, enquanto o jusnaturalista se perde na idealização imediata da Justiça, mantendo a gênese do justo fora do movimento social que o constitui ou que o dissimula, perdendo os dois o movimento histórico que de fato constitui a legalidade instituída. Ou seja, como fenômeno humano, o direito não pode radicar-se nem na coercitividade cega de sua própria validade, nem na miragem de uma justiça intermporal, mas apenas no concreto processo social-histórico em que se insere.
Ressalvando o caráter histórico-condicionado da distinção entre direito público e direito privado; feita a crítica do Estado como abstração a-histórica; e verificadas as limitações do positivismo jurídico-penal, é correto afirmar-se que o direito penal pertence ao direito público interno.




Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 6)

As três acepções da expressão "direito penal"

Frequentemente no mesmo contexto, são três as acepções com que o termo "direito penal" costuma ser usado e entendido:
1 - Direito penal como o conjunto das normas jurídicas que, através da cominação de penas, estatuem os crimes e dispõem sobre seu próprio âmbito de validade, sobre a estrutura e elementos dos crimes, além da aplicação e execução das penas. É o direito penal objetivo, ou jus poenale, sendo o sentido de cunho normativo.
2 - Direito penal exprimindo a faculdade de que seria titular o Estado para cominar, aplicar e executar as penas, apreendida como direito penal subjetivo, ou o  jus puniendi. É o sentido político da expressão e existe acirrada controvérsia doutrinária sob se existe, de fato, um direito penal subjetivo.
3 - Direito penal referindo-se ao estudo do direito penal como ciência, à apropriação intelectual de conhecimento sobre aquele conjunto de normas jurídicas ou aquela faculdade de Estado. É a acepção científica do termo. Vale lembrar que para o iniciante causa certa estranheza o fato de a ciência e de seu objeto terem o mesmo nome: "direito penal é a ciência que estudo o direito penal".
Feitas essas distinções, passa a ser importante estudar como se relacionam e se distinguem essas três acepções do direito penal: normativa, política e científica.


sábado, 5 de janeiro de 2013

Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 5)

Direito "penal" ou direito "criminal"?

Ilícita é toda conduta humana que se opõe a uma norma jurídica, direta ou indiretamente. A toda norma infringida estipula-se uma sanção correspondente, e quando esta sanção é uma pena, o ilícito é chamado crime.
As sanções jurídicas têm geralmente caráter reintegrativo, visando a restabelecer a situação jurídica anterior, ou compensatório, visando a uma reparação quando for impossível voltar ao estado anterior. A pena tem caráter retributivo: ela implica infligir ao criminoso um mal que excede a simples reintegração ou compensação devidas, e isso se dá sob a perda ou restrição de bens jurídicos ou direitos subjetivos.
Voltando à questão do crime, o que torna um ato ilícito em crime é uma decisão política (legislativa) que o vincula a uma pena (para Jescheck, "crime é todo aquele comportamento humano que o ordenamento jurídico castiga com uma pena"). A pena não é uma simples "consequência jurídica" do crime, mas sim, antes disso, sua própria condição de existência jurídica.
O debate sobre a designação direito "penal" ou direito "criminal" seria uma questão cerebrina não fosse o concurso de três variáveis. A primeira é a influência da opção do legislador, sendo que entre nós, durante o império, tivemos um Código Criminal, e depois da República, sempre um Código Penal. A segunda variável diz respeito a modelos doutrinários que tendam a uma ou outra opção: a expressão direito penal acentuaria o caráter sancionador e punitivo deste direito, enquanto direito criminal ressalta a característica da transgressão grave. A terceira e mais importante variável diz respeito ao alcance descritivo da designação proposta, sua capacidade de compreender determinados conteúdos. Alguns autores defendem que Direito Criminal seria preferível por abranger também o direito processual e respectiva organização judiciária (Mestieri e Frosali), dizendo ainda que com  as medidas de segurança, o direito penal não é "apenas o direito da pena" (Mir Puig).
Mas deve prevalecer mesmo a expressão direito penal, porque a pena é condição de existência jurídica do crime, não sendo apenas o conceito central dessa disciplina, mas sua presença é sempre limite daquilo que a ela pertença. Quanto às medidas de segurança, na prática têm caráter penal, pois constituem sanções com caráter retributivo. Conforme Heleno Fragoso: "não existe diferença ontológica entre pena e medida de segurança".

Leituras complementares: O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS - Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30, de Boris Fausto



"Em O crime do restaurante chinês, o historiador Boris Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal para narrar e analisar um dos acontecimentos policiais que mais mobilizaram a opinião pública paulistana. Ele era um menino quando, logo depois de um animado carnaval de rua, a cidade não falava de outra coisa: um homem negro era acusado de matar o ex-patrão e mais três pessoas com terríveis golpes de pilão.
O historiador narra o processo das investigações com a maestria de um romancista. O enredo lhe serve de mote para discutir vários temas cruciais para a historiografia do período. Um deles é a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados numa São Paulo cada vez mais populosa. Outro é a aplicação judicial e policial de doutrinas racistas, que então recebiam o endosso de cientistas de prestígio, e ajudaram a incriminar Arias de Oliveira, jovem negro do interior, ex-empregado do restaurante. Fausto comenta também o declínio do carnaval de rua paulistano, e, depois, a comoção futebolística que tomou conta da cidade com a participação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938. As fontes dessa reconstrução do passado são basicamente a memória do autor e os vários jornais e órgãos de imprensa que mobilizavam a opinião pública, muitas vezes com sensacionalismo.
A análise de Fausto ajuda o leitor a perceber o "fio da sensibilidade" que ligava o carnaval, os assassinatos hediondos e a Copa do Mundo. Por meio dele, seria possível até que a figura antes temida de Arias terminasse associada à do adorado Leônidas, outro brasileiro negro, goleador da seleção nacional nos campos da França."

Fonte: site da Companhia das Letras

Leitura obrigatória (em algum momento...)

Outro pensamento:

"O mais alto grau da injustiça é não ser justo e, todavia, parecê-lo".
(Tobias Barreto, jurista brasileiro, 1839-1889)

A justiça como parte da sociedade brasileira

Lição de casa: assistir ao documentário Justiça, de Maria Augusta Ramos (2004).

Nesse filme é mostrado o cotidiano do judiciário brasileiro através de uma série de gravações feitas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Não se trata de ficção, mas de um documentário, com cenas, personagens e casos reais, mostrando como os diferentes atores do processo judiciário o encaram (cidadãos, advogados, juízes...).

A ideia da cineasta não foi teorizar ou "julgar" a Justiça brasileira, mas tentar aproximar as pessoas comuns de algo que lhes parece tão distante (e ao mesmo tempo presente) que é o Direito posto pelo Estado.

Depois de ver o filme, buscar pensar nestas questões:
Há justiça de verdade no Brasil? E em outros países, é diferente? quais são as responsabilidades do atores do Direito na produção de injustiças? 

Pensamento do dia:

"A desgraça dos que não se interessam por política é serem governados pelos que se interessam”.
(autor desconhecido apud Weffort, 2006)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 4)

Política Criminal

Política criminal é o conjunto de avanços no direito penal, nas inovações empíricas no desempenho das instituições que integram o sistema penal, nas descobertas e propostas feitas feita criminologia, tudo isso visando a reforma ou a transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação.
Dependendo da etapa do sistema penal em que se concentre, podemos falar de política de segurança pública (ênfase na instituição policial); política judiciária (ênfase na instituição judicial), ou política penitenciária (ênfase na instituição prisional), todas integrando a política criminal.
Enquanto a criminologia interpreta a realidade que envolve o crime e sua punição, a política criminal busca transformar essa realidade.
Há uma histórica tensão entre a política criminal e o direito penal, aquela concebida como "conselheira" que procura aprimorar a função repressiva do sistema penal, enquanto o direito penal seria, por sua vez, a garantia das liberdades e a própria barreira da política criminal (von Liszt).
É notável a influência do fracasso da pena privativa de liberdades em concretsas propostas de política criminal. Segundo Heleno Fragoso, dito em 1985: "uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudicialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas anti-sociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais".
Seguindo as ideias de Alessandro Baratta (1986), numa sociedade de classes a política criminal não pode reduzir-se a uma "política penal", limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma "polítca de substitutivos penais", vagamente reformista e humanitária. Deve, sim, estruturar-se como política de transformação social e institucional para a construção da igualdade e da democracia. Considerando o direito penal nessa sociedade como desigual, a política criminal deve instituir a tutela penal em campos que afetem interesses essenciais para a vida, a saúde e o bem-estar da comunidade (crimes políticos, financeiros, contra o meio ambiente e o trabalho), além de contrair ao máximo o sistema punitivo, descriminalizando ou substituindo por formas de controle não estigmatizantes (sanções administrativas e civis) uma série de ações que foram concebidas como crimes sob o signo de uma concepção autoritária de Estado. Nessa linha, tendo como premissa o fracasso histórico da prisão em controlar a criminalidade e promover a reinserção social do condenado, essa política criminal progressista deve, em seu extremo, lutar pela abolição da pena privativa de liberdade, implantando-se "substitutivos penais", ampliando asa formas de suspensão condicional de execução, introduzindo formas de execução em regime de semiliberdade, reavaliando o trabalho carcerário, abrindo as prisões para a sociedade.
Por fim, ainda porpõe Baratta, pensando na legitimação do direito penal desigual (com base nas campanhas de alarme e terror), "uma batalha cultural e ideológica em favor do desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo das condutas desviantes e da criminalidade", tentando-se inverter as "relações da hegemonia cultural com um trabalho de decidida crítica ideológica, de produção científica e de informação".

Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 3)

Criminologia

Criminologia é "a atividade intelectual que estuda os processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante; os processos de infração e desvio destas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e conteúdo e os seus efeitos". (Lola Aniyar de Castro).
Em geral, nossos manuais de ensino de direito penal conceituam criminologia como um conjunto de conhecimentos cujo objetivo é o exame causal-explicativo do crime e dos criminosos, chegando por vezes a ser questionada (segundo René Ariel Dotti, no Brasil, sob o influxo do pensamento de Nélson Hungria, a criminologia "caiu em desgraça na órbita jurídica").
Esse desprezo e prevenção contra a criminologia se explica pela prática jurídica positivista de literalmente criar dois mundos epistemologicamente incomunicáveis entre o ser e o dever-ser, entre o mundo real e as lucubrações jurídicas, levando ao um desdém pela realidade, num intencional isolamento.
Mas na verdade ser e dever-ser relacionam-se como fato e valor, numa relação de totalidade dialética, e por essa perspectiva o saber criminológico e o saber jurídico-penal se comunicam permanentemente.
Revendo o conceito de criminologia proposto inicialmente por Aniyar de Castro, delineamos os seguintes aspectos: 1. a sociologia do direito penal e do comportamento desviante; 2. a etiologia [estudo das causas] do comportamento delitivo e do comportamento desviante; 3. a reação social, incluindo as penas e outras medidas, além da análise das instituições que as executam.
Quando a criminologia positivista não questiona a construção política do direito penal (como, por quê e para quê se ameaçam determinadas condutas), a aparição social  de comportamentos desviantes, nem a realização social desse direito, ela cumpre um importante papel político que é o de legitimação da ordem estabelecida. a criminologia oficial tem uma série de falhas, dentre as quais: a) tratar o evento criminal como episódio individual; b) respaldar a ordem legal como a ordem natural; c) tematizar um "homem delinquente" que, ao lado dos "loucos morais", viola a ordem legal/"natural"; d) ter na sua metodologia o centro e o limite de sua atividade científica; e) conceber de forma mecanicista os fatos sociais, produzindo explicações com base em relações causais. Isso em nome da aparente neutralidade do cientista social estudioso dos fenômenos criminais, indiferente às tensões da realidade social.
A Criminologia Crítica, ao contrário, não aceita como inquestionável o código penal, mas investiga como, por quê e para quem (contra quem X em favor de quem) se elaborou este código e não outro. Ela não se delimita às definições legais de crime, mas se interessa por outros comportamentos que implicam forte desaprovação social (desviantes). Procura ainda verificar o desempenho prático do sistema penal, qual sua real missão e como estão estruturados os instrumentos formais de controle social (hospícios, escolas, institutos de menores etc.). Além disso, a Criminologia Crítica insere o sistema penal - e sua base normativa, o direito penal - na disciplina de uma sociedade de classes historicamente determinada e trata de investigar, no discurso penal, as funções ideológicas de proclamar uma igualdade e neutralidade desmentidas pela prática.



Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 2)

Direito penal e sistema penal


Deve-se distinguir direito penal de sistema penal. Em uma definição preliminar podemos dizer que o direito penal é o conjunto de normas jurídicas que preveem os crimes e lhes cominam sanções, como como disciplinam a incidência e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicação e execução das sanções cominadas.
Há outros conjuntos de normas ligados ao direito penal (direito processual penal, a organização judiciária, a lei de execução penal, regulamentos penitenciários etc.) e instituições que são criadas por esses conjuntos, ou a eles subordinados, e desenvolvem suas atividades em torno da realização do direito penal.
Sistema penal é o grupo de instituições que, segundo regras jurídicas pertinentes (CPP; Lei de Execução Penal), se incumbe de realizar o direito penal; são elas: a instituição policial (que investiga o crime), a instituição judiciária (onde corre a ação penal pública contra o acusado) e a instituição penitenciária (a qual cabe fazer cumprir a pena do réu condenado). 
Para Zaffaroni, o sistema penal a ser conhecido e estudo deve ser o que existe na realidade, e não aquela abstração dedutível das normas jurídicas que o delineiam. Para Cirino dos Santos, o sistema penal pretende afirmar-se como "sistema garantidor de ordem social justa", mas seu desempenho real contradiz essa aparência. 
O sistema penal é apresentado como igualitário, mas na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas de determinados grupos sociais. Esse sistema também é apresentado como justo, aplicando apenas a pena necessária, mas de fato seu desempenho é repressivo, seja por não prevenir os crimes como não regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana, mas na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela, tornando o "criminoso" uma figura odiosa de todas as formas aos olhos da sociedade.
Seletividade, repressividade e estigmatização são, portanto, alguma das características centrais de sistemas penais como o brasileiro.






Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro, de Nilo Batista (parte 1)



Apresentação (por Emílio Garcia Mendez)
Introdução... entrega ao leitor as chaves necessárias para desarticular criticamente um direito penal com ênfase no enfoque lesa-majestade, fornecendo a possibilidade de reconstrução de um verdadeiro direito penal das garantias. Dos muitos méritos deste trabalho, elejo "arbitrariamente" um. O enfoque de Nilo Batista permite superar o debate estéril entre uma visão pan-penalista da vida social e um abolicionismo total e imediato do sistema penal.
O segredo da receita é simples: considerar seriamente os direitos e garantias, aprimorar as técnicas de defesa jurídica da sociedade civil e decifrar os enigmas da dogmática jurídica, para torná-lo acessíveis aos movimentos sociais.

“O homem não existe para a lei, mas sim a lei existe para o homem”.
Karl Marx

1 – Direito Penal e sociedade

É comum a todos os trabalhos sobre direito penal observar as relações entre sociedade e direito. Certamente os homens sempre se moveram dentro de sistemas de regras, mas convém questionar imediatamente as formas de aparição histórica do direito. O mais grave risco idealista de quem se esquece disso é o chamado “universalismo a-histórico” (Miaille), como se a história do direito fosse destacada e autônoma do contexto histórico em que esse direito foi produzido, servindo para compor um conjunto de noções válidas para qualquer época e sociedade.
É decisivo advertir-se para a “essência econômica” que subjaz às definições jurídicas abstratas, compreendendo o verdadeiro processo social de criação do direito. (Poulantzas).
Já dizia Tobias Barreto que “não existe um direito natural, mas há uma lei natural do direito” e que “tudo é produto dele mesmo [do homem]”, do seu trabalho, da sua atividade”. Tobias Barreto, antecipando-se às ideias jurídicas de sua época, concebia o direito não é alvo revelado ao homem, nem descoberto por sua razão, mas sim produzido pelo grupamento humano e pelas condições concretas em que esse grupamento se estrutura e se reproduz.
O direito penal vem ao mundo (é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira.
No marco da proteção e da continuidade da engrenagem econômica dessa ordem política e social, estará a contribuição do respectivo direito. Para a boa parte do trabalhos introdutórios ao DP, fica evidenciada a característica finalística do direito penal, que existiria para cumprir finalidades, para que algo se realize. É importante conhecer essas finalidades para conhecer bem o direito penal.
Afirmamos então que o direito penal é disposto pelo estado para a concreta realização de fins; toca-lhe, portanto, uma missão política, que os autores costumam identificar, de modo amplo, na “garantia das condições de vida da sociedade”, ou “na finalidade de combater o crime” (Damásio), ou na “preservação dos interesses do indivíduo ou do corpo social” (Heleno Fragoso). Tais fórmulas não devem ser aceitas com resignação pelo iniciante. O combate que o direito penal pode oferecer ao crime praticamente se reduz (pelo precário desempenho do efeito intimidador) ao crime acontecido (sendo mínima sua atuação preventiva) e registrado (criminalidade aparente).
A função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social é habitualmente chamada de função “conservadora” ou de “controle social”, sendo esta a função preponderante do direito penal, dentro todas as outras.
Conhecer as finalidades do direito penal, que é conhecer os objetivos da criminalização de determinadas condutas praticadas por determinadas pessoas, e os objetivos das pena não ultrapassa a área de atuação do jurista, pois essa indagação comparece em vários momentos da atividade do jurista (interpretação, teoria, debate da pena), não poderia deixar de dirigir-se ao direito penal como um todo.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Filosofia do direito: do perguntador infantil ao neurótico filosofante, de Tercio Sampaio Ferraz Junior

Não há uma Filosofia do Direito, mas várias, e é pouco provável que alguém se consiga dizer o que é A "Filosofia do Direito", porque são várias.
Karls Jaspers diz que as perguntas metafísicas são feitas pelos filósofos e pelas crianças. Pergunta de filosofia é pergunta infantil, só criança faz. Jaspers diz que as crianças fazem perguntas filosóficas, metafísicas, mas também os filósofos, e eu acrescentaria mais um grupo, o neurótico. A pergunta filosófica e a pergunta neurótica inegavelmente se aproximam, se não se confundem. Mas há uma diferença expressiva entre ambas. É que o neurótico pergunta e talvez até ensaia alguma resposta, mas ele volta sempre à pergunta, e o filósofo tem às vezes a pretensão de conseguir responder à pergunta neurótica.
As perguntas filosóficas em relação ao Direito são perguntas desse tipo, infantis e neuróticas se quiserem, são perguntas que provavelmente não se faz o homem adulto comum, ou que não se deve fazer, para quem está subjugado. Afinal, a pergunta "o que o direito", por exemplo, é uma pergunta até certo ponto idiota e infantil. Ora, o que é o Direito? A melhor resposta seria? o Direito é o Direito, tudo bem. Vamos estudá-lo, dividi-lo, contemplá-lo, explicá-lo, aprender a aplicá-lo, as o Direito é o Direito. o filósofo faz, porém, essa pergunta. E quando alguém responde: "O direito é um, sei lá, conjunto de normas válidas", ele volta: "O que é norma?", "o que é norma válida?" e assim vai, porque filosofar é uma atividade incessante.
Num curso em que se estuda o Direito, a Ciência do Direito, tradicional e repetidamente, nesse universo ao qual nos subjugamos, reconhecido como ciência prática, voltada para a vida, para lidar com problemas, lidar com a sociedade, lidar com seus conflitos etc. um perguntador que não serve é um figura estranha nesse ninho, é difícil encaixá-lo.
Na hora de responder, o filósofo, exatamente porque está também subjugado, mas quer conhecer o mundo que o subjuga, vai além da pergunta e ensaia suas respostas. 
As pessoas comuns, diante dos fatos corriqueiros que muitas vezes parecem (e são) injustos,dizem que o Direito não existe", ou "o que é esse direito que se ensina nas escolas e não é o que se vê nas ruas". Ela não pode deixar de fazer essas perguntas, porque essa é a questão que todo mundo, em algum momento de sua vida va fazer: "que diabos que é isso, o Direito  Isso não me dá uma resposta, que me deixa na mão, o que é isso?". O filósofo vai procurar respostas e vai procurar palavras para explicar isso. E com base nisso, vamos construir nossas respostas e aqui, na elaboração das respostas, as coisas começam a aparecer. Como a indignação, no entanto, diante disso, é muito maior que a possibilidade de resposta, a resposta parece sempre insuficiente.
A busca dessa resposta gera no campo da filosofia do Direito uma série de Doutrinas básicas do estudo do direito, que criam estruturas, subestruturas, conceitos, princípios para tentar responder àquelas questão
Quando estudamos Filosofia do Direito, encontramos o perguntador e o respondedor. No respondedor aparece a Doutrina Básica, ou clássica, para o estudo do Direito: tripartição de poderes, teoria política, etc... O perguntar volta as responder e faz perguntas sobre o que é isso que ele definiu, volta ao infantil, ao neurótico, mas em em algum momento há uma cristalização.
Quem estuda Filosofia do Direito às vezes vai mais para esse lado, começa a aprender um elenco de dourinas de base que às vezes confundem, porque tais perguntas são perguntas neurotizantes da criança, que não se acabam naquele resposta. Quem estuda Direito, tem que passar por aí.
Talvez esse seja o filósofo de Direito neurótico puro, só pergunta, nunca dá resposta. 
O estudo da Filosofia do Direito numa faculdade se dispersa em várias filosofias do Direito na fomr ade doutrinas de base e aí nós temos doutrina de Kant, Kelsen, doutrinas que servem para elaborações de respostas a perguntas que, afinal, acabam resultando na própria atividade jurídica.
Essas duas atividades, perguntar e responder, parecem-me importantes para se entender o que faz a Filosofia do Direito um um curso de Direito. Ela tenta responder a indagações angustiosas. E essas indagações são tão angustiosas que, quando alguém dá uma resposta que parece sublimar a angústia, há um momento de êxtase, que, se não acaba com a pergunta, parece dar um sentido a ela.
Uma resposta dada pela Filosofia do Direito não responde simplesmente a questão, ela aponta um caminho; e isso é exercício de uma resposta filosófica; mas não deixem de refletir sobre o outro lado, a angústia que os fez aplaudir uma resposta aparentemente satisfatória.
Nós costumamos dizer que é impossível deixar de fazer a pergunta: O que a Filosofia do Direito? E é possível junto com ela perguntar: Para que a Filosofia do Direito? Não sei se é possível responder definitivamente a essas perguntas, acho que não. Mas na verdade, na dúvida entre saber o que é ou não saber o que é, saber para quer serve ou não saber e para que serve, tal dúvida só pode ser aquietada por quem se dedica ao exercício filosófico e, daí, não temos saída.
O que é Filosofia do Direito? Essa é uma pergunta cuja resposta só dá para ser alcançada de um jeito, filosofando.