O direito penal como direito público
Normalmente o direito penal objetivo é posicionado na esfera do direito público interno por conta dos supostos objetivos sociais gerais de suas normas (por seu conteúdo) ou então da exclusividade e imperatividade com as quais o Estado as impõe (aspecto formal).
É nisso que se baseiam os clássicos penalistas quando lembram que o direito penal objetivo só pode ser exercido pelo estado (Magalhães Noronha e Basileu Garcia) e ainda que o direito penal está relacionado ao direito público pelo "fato de atender, de maneira imediata e prevalecente, a um interesse de caráter geral" (Miguel Reale). Heleno Fragoso fundamenta essa inclusão "não só proque sua proteção refere-se sempre a interesses da coletividade, como também o Estado detém o monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido".
Uma revisão dessas perspectivas supõe três linhas críticas: 1) a crítica da distinção a-histórica entre direito público e direito privado; 2) crítica do Estado como abstração a-histórica; e 3) a crítica do positivismo jurídico penal.
1) A distinção entre direito privado-direito público era completamente desconhecida das práticas penais primitivas, aparecendo pela primeira vez no direito romano (em Ulpiano), quando surgiu dos interesses privados do patriciado em tornar seus interesses "públicos", intermediados pelo governante. Depois da superposição desses dois eixos durante a Idade Média até o final do Absolutismo (senhor feudal era dono do imperium=direito público e do dominium=direito privado), essa distinção ressurgiu com toda força por conta dos interesses dos revolucionários burgueses, novamente mostrando a origem classicista dessa dicotomia.
2) Importante também questionar o Estado como promotor da "harmonia e da estabilidade sociais, visando o bem de toda a coletividade", cabendo desmistificar esse papel por conta que o Estado foi um produto de sociedades que, para resolver seus antagonismos inconciliáveis, estabeleceram um poder aparentemente acima da sociedade, mas dela originado e que na sociedade de classes tem apenas papel de manter uma ilusória comunidade de interesses, visto que protege primordialmente os interesses da classe dominante.
3) Cabe, finalmente, a crítica do positivismo jurídico-penal, que entende que o objeto de estudo do penalista deve ser exclusivamente o direito estatal, reducionismo vinculado a uma tradição ideológica do estado liberal. Sem dúvida alguma o objeto privilegiado do direito penal são as normas jurídicas estatais, mas não se pode olvidar a face ilegal do sistema penal (ditadura militar, violência policial, "lei dos criminosos"). O estudo do direito penal não pode, assim, circusncrever-se ao discurso legal do estado, perdendo-se na ilusória polaridade jusnaturalismo-positivismo, lembrando as palavras de Marilena Chauí: "Abstrações gêmeas, o positivismo jurídico toma o direito como fato, enquanto o jusnaturalismo o apreende como idéia", dissimulando o positivista a significação social em uma "ordem" posta a todos pela classe dominante, enquanto o jusnaturalista se perde na idealização imediata da Justiça, mantendo a gênese do justo fora do movimento social que o constitui ou que o dissimula, perdendo os dois o movimento histórico que de fato constitui a legalidade instituída. Ou seja, como fenômeno humano, o direito não pode radicar-se nem na coercitividade cega de sua própria validade, nem na miragem de uma justiça intermporal, mas apenas no concreto processo social-histórico em que se insere.
Ressalvando o caráter histórico-condicionado da distinção entre direito público e direito privado; feita a crítica do Estado como abstração a-histórica; e verificadas as limitações do positivismo jurídico-penal, é correto afirmar-se que o direito penal pertence ao direito público interno.
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